Edicões Gambiarra Profana/Folha Cultural Pataxó

quarta-feira, 18 de abril de 2012

TEMPO QUE SE FOI


                      O dia amanhecia com o sol tocando as folhas verdes das árvores, acariciando as flores que enfeitavam a entrada da varanda. Folhas e flores dançavam levemente levadas pelo vento que chegava junto com o sol, alegrando a manhã desse novo dia.
                     Chegou como se fosse do nada, abriu a porteira de madeira e foi entrando pelo quintal sem prestar atenção nas folhas e nem nas flores que dançavam levadas pelo vento. Caminhou até o tanque e serviu-se de água fresca e nem mesmo percebeu o olhar do menino que acompanhava pela janela os seus passos. Tirou o chapéu e bateu na roupa com força para tirar a poeira que acumulou durante a caminhada. O menino saiu da janela, atravessou a sala, abriu a porta e foi caminhando pela varanda ao encontro do estranho, desceu os degraus e foi passo a passo até o tanque onde o estranho estava parado olhando a simples casa. Olharam-se por alguns minutos sem falar nada, até que o estranho quebrou o silêncio.

- Você mora aqui?
+ Sim – respondeu o menino com voz tímida e baixa
- Não vai me convidar para sentar nos degraus da varanda pelo menos?

O menino acenou que sim e caminharam para a varanda em silêncio e sentaram-se nos degraus.
+ De onde você vem? – perguntou o menino
- De terras de meu Deus, onde andei fugindo de mim mesmo
+ Conheço seu rosto de algum lugar e não sei de onde
- Talvez de algum retrato antigo ou algum sonho esquecido

                 Os dois ficaram em silêncio observando as aves que cortavam o céu, cortavam o tempo voando de encontro a novos, antigos lugares, paisagens remotas, ou cortando os horizontes sem destino, apenas cortando o silêncio com suas asas.

 O estranho fitou a cerca por um momento e disse:
- Já vivi aqui
+ Onde? Aqui?
- Sim, há anos atrás
+ E por que foi embora?
- Talvez por não acreditar na vida
+ Na sua vida?
- Em tudo
+ E o que fez esses anos todos?
- Andei por ai, sentindo o vento da solidão
+ Tem filhos?
- Sim, mas não me conhece
+ Mas talvez ele possa sentir você, sentir sua falta
- Ninguém sente falta daquilo que não conhece
+ Talvez sinta e você nem mesmo sabe o quanto

O estranho ficou um pouco distante, pensativo
+ Preciso regar o jardim
- Tem alguém além de você em casa?
+ Minha avó, ela está doente, não tem muitos dias, diz que logo partirá
- E sua mãe?
+ Partiu pro céu
O estranho calou-se, ficou quieto, entristecido e de seus olhos nasceram pequenas e sentidas lágrimas e por fim falou:
- Vamos regar o jardim

Os dois ficaram ali um bom tempo regando o jardim, depois ficaram caminhando pelo quintal, passos leves e lentos, sentindo o calor do sol em seus rostos e de repente o estranho falou:
- Preciso ir
+ Pra onde vai?
- Sem rumo, seguirei meu destino
+ Fique
- Acho melhor não
+ Por que não?
- Tenho lembranças do tempo que não vivi, que perdi
+ Poderá recuperar
- Não há o que recuperar
+ Não me esqueça
- Nunca te esquecerei, adeus

E assim o estranho foi caminhando em direção a porteira, colocou o chapéu, abriu a porteira devagar e saiu do quintal seguindo rumo ao horizonte sem fim, rumo a sua própria solidão. O menino ficou olhando um tempo, sentindo um aperto no coração, virou as costas e entrou na casa para ver a avó, que observou por alguns momentos, pela janela do quarto e voltou a deitar-se. O menino entrou no quarto, chegou perto da avó e falou:
+ Conheço o estranho de algum lugar e acho que sempre senti sua falta
= Olhe o retrato na cômoda do seu quarto, aquele que nunca prestou atenção
O menino saiu e foi ao seu quarto, olhou o retrato e voltou
= Quem são no retrato?
+ Minha mãe, o estranho e eu criança no colo de minha mãe
= E agora sabe quem ele é?
+ Sim
= Quer ir atrás dele?
+ Não
= Ficará sozinho, não tenho muitos dias de vida
+ Mas tentarei ser assim, sozinho
O menino saiu do quarto da avó, atravessou a sala e debruçou-se na janela e ali ficou olhando a distância que o separou do futuro e do estranho.

12 comentários:

  1. Muito bom seu conto. As vezes realmente sentimos falta do que não temos e saudade do que não vivemos. Grande beijo!

    ResponderExcluir
  2. Encantador, uma história real, contada de forma real. Me sensibilizou. Beijinhos carinhosos para ti meu amigo.

    ResponderExcluir
  3. MEU AMIGO POETA QUE LINDO E EMOCIONANTE CONTO FIQUEI DEVERAS COMOVIDA E EMOCIONADA COM O DESENROLAR DA HISTÓRIA LINDA NOS PRENDE A TENÇAÕ E O CORAÇÃO
    UM GRANDE ABRAÇO PARABENS POETA BJS MARLENE

    ResponderExcluir
  4. O tempo que se foi,
    E o que,ainda, há-de vir
    A dor que o coração corrói
    Para o amor destruir!

    Como as folhas das árvores cair
    Com o vento que sopra muito forte
    Como as noites sem dormir
    Tantas pessoas no mundo sem sorte!

    Desejo uma boa tarde para você.
    Um abraço
    Eduardo.

    ResponderExcluir
  5. Nossa um conto forte, muito forte, leva-nos a umedecer os olhos, mas quantos meninos não estão assim abandonados por alguém que não em coragem de ser, pena muita pena, beijos Luconi

    ResponderExcluir
  6. Bom dia!
    Adorei o micro conto, emociona!
    Me senti assim, abandonada, quando
    há 3 anos atras meu pai se foi, faleceu.
    Mas entendi que a vida é assim, todos nós
    um dia iremos e temos que aceitar...Abraços

    ResponderExcluir
  7. belíssimo... setenciou-se mais um na solidão... bjuuu

    ResponderExcluir
  8. Um texto comevedor, escrito com a emoção própria de um grande escritor. LINDO!


    beijinhos

    ResponderExcluir
  9. Lindo e comovente!!beijos,ótimo dia!chica

    ResponderExcluir
  10. Arnoldo,um conto surreal e muito bonito!Era o avô do menino que veio visitar!Bem inspirado e bonito!bjs,

    ResponderExcluir
  11. Justifica-se a opção do menino, eis que a possibilidade de recuperação que ofereceu não foi aceita. Pode-se não suprir as necessidades gritantes do passado, mas nada impede que se construa algo de valor, a partir do hoje.
    Muito lindo e comovente seu conto.
    Bjs.

    ResponderExcluir
  12. Gostei muito de ler, imaginar o lugar e os personagens. Muito bom mesmo! Beijos

    ResponderExcluir